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os porcos ou para suas porcas. Antes que se possa falar em perdão, seria
necessário que o culpado, em vez de contestar, se reconhecesse culpado,
sem arrazoados nem circunstâncias atenuantes, e sobretudo sem acusar
suas próprias vítimas  é o mínimo! Para que perdoássemos, seria
necessário primeiro, não é?, que nos viessem pedir perdão. (& ) Por que
perdoaríamos os que lamentam tão pouco e tão raramente seus
monstruosos delitos? (& ) Porque se os crimes não-expiados são
precisamente os que precisam ser perdoados, os criminosos não-
arrependidos são precisamente os que não necessitam de perdão.
Eles não, sem dúvida. Mas e nós? O ódio é uma tristeza, sempre, a alegria é que é
boa. Não, decerto, que devamos reconciliar-nos com os brutos, nem tolerar seus
abusos. Mas será que precisamos odiá-los para combatê-los? Não, tampouco, que
se deva esquecer o passado. Mas será que precisamos do ódio para nos lembrar
dele? Não se trata de remitir os pecados, o que não podemos fazer, repitamos 
e, aliás, não devemos (apenas as vítimas poderiam acreditar-se autorizadas a
tanto, mas aqui faltam vítimas, pois foram mortas). Trata-se de suprimir o ódio,
na medida do possível, e de combater portanto com a alegria no coração, quando
ela for possível, ou com a misericórdia na alma, quando a alegria for impossível
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Pequeno Tratado das Grandes Virtudes
ou despropositada  trata-se de amar nossos inimigos, se pudermos, ou de
perdoá-los, se não pudermos.
Cristo ou santo Estevão deram o exemplo, a crermos na tradição, desse perdão
sem preliminares nem condições; desse perdão que não espera que o mau o seja
menos (pois ele lamentaria tê-lo sido) para o perdoar, desse perdão que é
verdadeiramente um dom, e não uma troca (meu perdão contra seu
arrependimento), desse perdão incondicional, desse perdão em pura perda, se
quisermos, mas que é, contudo, contra o ódio, a maior vitória, e a única talvez,
desse perdão que nunca esquece mas que compreende, que não apaga mas que
aceita, desse perdão que não renuncia nem ao combate nem à paz, nem a si nem
ao outro, nem à lucidez nem à misericórdia! Estou plenamente de acordo com
que esses exemplos nos excedem. Mas isso acaso impede que nos esclareçam?
Não é, no entanto, que as Escrituras possam fazer as vezes de sabedoria, nem
que tenham resposta para tudo, nem que eu as aprove por inteiro (mesmo
deixando de lado a religião). Não estou disposto a oferecer a outra face, e contra
a violência prefiro o gládio à fraqueza. Amar nossos inimigos supõe que os
tenhamos (como poderíamos amar o que não existe?). Mas termos inimigos não
supõe necessariamente que os odiemos. O amor é uma alegria, não uma
impotência ou um abandono: amar os inimigos não é cessar de combatê-los; é
combatê-los alegremente.
A misericórdia é a virtude do perdão, e seu segredo, e sua verdade. Ela não abole
a falta mas o rancor, não a lembrança mas a cólera, não o combate mas o ódio.
Ela ainda não é amor mas o que faz as vezes dele, quando ele é impossível, ou
que o prepara, quando ele seria prematuro. Virtude de segunda ordem, se
quisermos, mas de primeira urgência, e por isso tão necessária! Máxima da
misericórdia: se não podes amar, cessa ao menos de odiar.
Notar-se-á que a misericórdia pode ter por objeto tanto as faltas como as
ofensas. Tal hesitação é bem reveladora de nossa pequenez, que sempre condena
o que nos condena, para a qual toda ofensa é uma falta, para a qual toda afronta é
condenável. Assim é, e é preciso que se saiba. Misericórdia para todos, e para nós
mesmos.
Por ser o ódio uma tristeza, a misericórdia (como o trabalho do luto, com o qual
ela se parece e de que talvez dependa: perdoar é fazer o luto de seu ódio); por ser
o ódio uma tristeza, dizia, a misericórdia está do mesmo lado da alegria: sem
ainda ser alegre, e nesse caso é perdão, ou já sendo, e nesse caso é amor. Virtude
mediadora, ou de transição. No fim, porém, para quem puder chegar a ele, não
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André Comte-Sponville
há nada mais a perdoar: a misericórdia triunfa nessa paz (adeus ódio! Adeus
cólera!) em que o perdão culmina e se abole. Misericórdia infinita, como é o mal,
ou que deveria sê-lo, e por isso fora de nosso alcance, sem dúvida. Mas já é uma
virtude esforçar-se nesse sentido: a misericórdia é o caminho, que inclui até
mesmo os que fracassam nela. Perdoa-te, minh alma, teus ódios e tuas cóleras.
Podemos perdoar a nós mesmos? Claro, pois podemos nos odiar e cessar de nos
odiar. Senão, que sabedoria? Que felicidade? Que paz? Temos de nos perdoar
por sermos apenas nós& E nos perdoar também, quando pudermos, sem
injustiça, por ser o ódio às vezes forte demais, ou o sofrimento, ou a cólera, para
que possamos perdoar a este ou aquele de nossos inimigos& Felizes os
misericordiosos, que combatem sem ódio ou odeiam sem remorso!
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Pequeno Tratado das Grandes Virtudes
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A gratidão
A gratidão é a mais agradável das virtudes; não é, no entanto, a mais fácil. Por
que seria? Há prazeres difíceis ou raros, que nem por isso são menos agradáveis.
Talvez sejam até mais. No caso da gratidão, todavia, a satisfação surpreende
menos que a dificuldade. Quem não prefere receber um presente a um tapa?
Agradecer a perdoar? A gratidão é um segundo prazer, que prolonga um
primeiro, como um eco de alegria à alegria sentida, como uma felicidade a mais
para um mais de felicidade. O que há de mais simples? Prazer de receber, alegria
de ser alegre: gratidão. O fato de ela ser uma virtude, porém, basta para mostrar
que ela não é óbvia, que podemos carecer de gratidão e que, por conseguinte, há
mérito  apesar do prazer ou, talvez, por causa dele  em senti-la. Mas por quê?
A gratidão é um mistério, não pelo prazer que temos com ela, mas pelo obstáculo
que com ela vencemos. É a mais agradável das virtudes, e o mais virtuoso dos
prazeres.
Objetar-me-ão a generosidade: prazer de oferecer, diz-se& O fato de ser um
argumento publicitário deve, porém, nos deixar vigilantes. Se fosse agradável dar,
acaso teríamos necessidade dos publicitários para pensar nisso? Se a generosidade
fosse um prazer, ou antes, se fosse apenas um prazer, ou sobretudo um prazer,
será que ela nos faltaria a esse ponto? Não se dá sem perda, por isso a
generosidade se opõe ao egoísmo, e o supera. Mas e receber? A gratidão não nos
tira nada, ela é dom em troca, mas sem perda e quase sem objeto. A gratidão
nada tem a dar, além do prazer de ter recebido. Que virtude mais leve, mais
luminosa, diríamos mais mozartiana, e não apenas porque Mozart nos inspira
essa virtude, mas porque a canta, porque a encarna, porque há nele essa alegria,
esse reconhecimento desvairado por sabe-se lá o que, por tudo, essa
generosidade da gratidão, sim, que virtude mais feliz e mais humilde, que graça
mais fácil e mais necessária do que ser grato, justamente, com um sorriso ou um
passo de dança, com um canto ou uma felicidade? Generosidade da gratidão&
Esta última expressão, que devo a Mozart, esclarece-me: se a gratidão nos falta
com tanta freqüência, não será, de novo, mais por incapacidade de dar do que de
receber, mais por egoísmo do que por insensibilidade? Agradecer é dar; ser grato
é dividir. Esse prazer que devo a você não é apenas para mim. Essa alegria é a
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André Comte-Sponville
nossa. Essa felicidade é a nossa. O egoísta pode regozijar-se em receber. Mas seu
regozijo é seu bem, que ele guarda só para si. Ou, se o mostra, é mais para fazer [ Pobierz caÅ‚ość w formacie PDF ]

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